Textos

Insípido, inodoro e incolor

           Não se recordava por quanto tempo havia ficado trancada naquele apartamento. Mas hoje ela decidiu levantar. Foi até a cozinha, tirou o lixo da pia, depois das demais lixeiras. Em seguida fora a vez das garrafas, dos maços vazios, dos fast food que se proliferavam.

             Desceu, colocou tudo no cesto, olhou pro céu. Pela primeira vez em tanto tempo conseguia enxergar cores. Conseguiu enxergar as nuvens, admirou as estrelas. Em que momento havia deixado de se encantar com a lua? Hoje não quis um cigarro, na verdade, acredita que nem amanhã, menos ainda depois. Com o lixo, lhe pareceu apropriado descartar o que achava tóxico.

             Subiu as escadas novamente, trancou a porta, escutou risadas em outro apartamento, música num terceiro. Recordou que também havia deixado de ouvir. Admirou-se, inclusive, ao prestar atenção no barulho que sua fechadura fazia a cada volta com a chave. Era uma sensação de estar vivendo pela primeira vez. Em algum momento havia perdido a si mesma.
Que cheiro ruim da cozinha. Começa a ordenar todos os copos e pratos e louças espalhados por toda casa. Atentou-se que até do cheiro não lembrava mais, ainda que fosse aquele odor pútrido, estava feliz por voltar a sentir.

              Hoje ela comeria comida que ela mesma fez. Nada de embutidos, enlatadas, porn food ou pior, nada. Hoje ela foi para o fogão. O cheiro que exalava, ah o cheiro, as cores, as texturas. Texturas! Antes toda comida lhe parecia ter a mesma consistência e sabor de um isopor. Mas hoje não, hoje há maciez, crocancia... falta tomilho. Eita! Tem sabor...

              Sentada à mesa, olha ao redor, como havia deixado se bagunçar até aquele ponto? Mas, hoje, ela se ergueu, sentada à mesa, finalmente, o comer lhe deu prazer.
Aos poucos foi organizando tudo que estava em desordem, sem pressa, sem agonia, tudo a seu tempo, pra ela apenas o que importa é que, hoje, ela se levantou.
Aline Fernanda
Enviado por Aline Fernanda em 10/01/2021
Alterado em 11/01/2021
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